sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Prêmio Novos Tradutores - Universidade Gama Filho - 2010


Realizei a tradução abaixo para a participação no "Prêmio Novos Tradutores" e fiquei entre os finalistas!

Hermann, O Irascível

A História da Grande Lamentação

Em meados da segunda década do século XX, após a Peste Negra ter assolado a Inglaterra, Hermann, O Irascível, também chamado de O Sábio, ascendeu ao trono inglês. A praga havia devastado toda a realeza, com exceção das terceira e quarta gerações, e assim sucedeu que Hermann, o décimo quarto na linhagem dos Saxe-Drachsen-Wachtelstein e trigésimo na ordem de sucessão, um dia se deu conta de que era o governante da Grã-Bretanha e de seus domínios além-mar. Sua ascensão ao trono foi um daqueles eventos inesperados que acontecem na política, mas nem por isso seu reinado foi menos eficaz. Em muitos aspectos, foi o mais progressista dos monarcas a sentar-se em um trono proeminente: antes que as pessoas pensassem em ir, ele já estava voltando. Até seus ministros, progressistas – ainda que o fossem por tradição – achavam difícil adequar-se ao ritmo de suas sugestões legislativas.

– Na realidade – admitiu o Primeiro Ministro – estas criaturas pró-voto feminino estão nos atrapalhando. Elas perturbam nossas reuniões por todo o país, e tentam transformar a Rua Downing em uma baderna política.

– Devemos controlá-las – disse Hermann.

– Controlá-las... – disse o Primeiro Ministro – isso, exatamente isso. Mas como?

– Vou elaborar um projeto de lei – disse o Rei, sentando-se próximo à sua máquina de escrever – decretando que as mulheres votem em todas as eleições futuras. Atente-se que eu disse “votem”, ou, melhor dizendo, “devem votar”. O voto permanecerá facultativo, conforme o era anteriormente, para eleitores do sexo masculino. Porém, todas as mulheres entre vinte e um e setenta anos serão obrigadas a votar, não apenas para as eleições do Parlamento, conselhos municipais, conselhos distritais, associações de bairro e prefeituras, mas também para aquelas de médicos legistas, inspetores de escola, ministros religiosos, curadores de museus, autoridades sanitárias, interpretes do tribunal de pequenas causas, professores de natação, empreiteiros, maestros, fiscais, professores de educação artística, sacristães de catedral e outras ocupações locais que acrescentarei conforme eu vá me lembrando. Todos esses cargos serão eletivos, e uma multa será aplicada, no valor de 10 libras, à eleitora que se ausentar em qualquer eleição concernente à sua área residencial. A única justificativa aceita consistirá nos casos de doença, desde que devidamente comprovados por atestado médico. Encaminhe este projeto de lei para tramitação nos dois Parlamentos e traga-o de volta para que eu o assine depois de amanhã.

Desde o início, o decreto de Voto Feminino Obrigatório produziu pouca ou nenhuma euforia, mesmo entre os grupos que mais haviam lutado pela liberação do voto. A maioria das mulheres do campo se mostrou indiferente ou hostil à agitação sufragista, e a maior parte das sufragetes fanáticas começou a se questionar sobre o que haveria de tão atraente na perspectiva de inserir uma cédula em uma urna de voto. Se na zona rural a execução das disposições da nova lei foi demasiadamente cansativa, nas vilas e cidades foi um pesadelo. As eleições pareciam não ter fim. Lavadeiras e costureiras saíam apressadas do trabalho para votar, geralmente selecionando ao acaso um candidato cujo nome elas nunca haviam ouvido falar. Balconistas e garçonetes acordavam muito mais cedo para votar, antes de se dirigirem a seus locais de trabalho. As mulheres da sociedade ficavam impedidas de comparecer a seus compromissos, e se aborreciam com a necessidade constante de apresentar-se nos cartórios eleitorais. Por isso, as festas de finais de semana e as férias de verão tornaram-se, pouco a pouco, um luxo masculino. As viagens ao Cairo ou à Riviera eram limitadas às efetivamente incapacitadas para o trabalho ou aos arquimilionários, pois mesmo os ricos dificilmente podiam correr o risco de acumular multas de 10 libras durante um período de ausência prolongado.

Já era de se esperar que a agitação das reivindicações femininas pela desobrigação ao voto tornar-se-ia um movimento de grandes proporções. A Aliança Não ao Voto Feminino teve milhares de adesões. Suas cores, verde-limão e marrom-escuro, foram ostentadas por toda a parte, e seu hino de guerra, “Não queremos votar!”, tornou-se um refrão popular. Como o Governo não demonstrou sinais de estar impressionado com as incitações pacíficas, métodos mais violentos entraram em voga. Reuniões eram perturbadas, ministros cercados, policiais agredidos, refeições rejeitadas nas prisões e, na véspera do aniversário da Batalha de Trafalgar, as mulheres rodearam a coluna de Nelson e destruíram sua tradicional ornamentação. Ainda assim, o Governo estava determinado a manter sua decisão: as mulheres deveriam votar.

Enfim, com perspicácia, algumas mulheres idealizaram uma última e decisiva cartada e, por incrível que pareça, ninguém havia pensado nisso antes. A Grande Lamentação estava organizada. Os revezamentos femininos, de dez em dez mil, promoveram lamentações ininterruptas nos locais púbicos da metrópole. Elas choraram nas estações de trem, nos metrôs e ônibus, na Galeria Nacional, na loja de departamentos Army & Navy Stores, no St. James Park, nos concertos musicais, na Rua Prince’s e na galeria Burlington Arcade. Até mesmo o sucesso da então imbatível e brilhante comédia-farsa Henry’s Rabbit foi ameaçado pela presença de deprimentes mulheres em pranto no anfiteatro, galeria e nas plateias. Ademais, um dos mais brilhantes casos de divórcio já julgados em muitos anos perdeu a cena para o comportamento choroso de uma parte da audiência.

– O que faremos? – perguntou o primeiro-ministro, cuja cozinheira havia chorado sobre toda a louça do café da manhã e cuja babá havia saído, chorando calada e tristemente, para levar as crianças a um passeio no parque.

– Há tempo para tudo – disse o rei. – Agora é tempo de ceder. Faça tramitar uma medida nos dois Parlamentos privando as mulheres do direito ao voto, e traga-a de volta para a aprovação real, depois de amanhã.

Assim que o ministro retirou-se, Hermann, O Irascível, também chamado de O Sábio, deu uma sonora gargalhada.

– Todos os caminhos vão dar a Roma – afirmou o rei. – Todavia – acrescentou – os mais bizarros são os melhores.

Saki (pseudônimo de Hector Hugh Munro, 1870-1916)